Nosso Século XXI (1ª Ed.)

Uma tomografia da
desindustrialização

JOSUÉ CATHARINO FERREIRA - 13/07/2001

Antigo centro industrial, Santo André e os demais municípios da região sofrem dramática transformação na estrutura econômica. Transformação causada por múltiplos fatores, que vão desde os problemas crônicos de infra-estrutura urbano-industrial, passando pela ausência de políticas públicas que evitassem o esvaziamento, até chegar aos aspectos macroeconômicos causados pela globalização imposta nos últimos anos pelas nações desenvolvidas aos demais países.

A industrialização de Santo André ocorreu como prolongamento da industrialização da cidade de São Paulo. Como naquela época existiam extensos terrenos cujos preços eram acessíveis, formou-se no lugar onde hoje denominamos ABC a maior concentração industrial do Brasil. A industrialização foi impulsionada pela existência de terrenos baratos, água e energia elétrica disponíveis, além de meio de transporte rápido e eficiente para a época: a ferrovia.

Movida especialmente pela especulação imobiliária, a primeira fase da industrialização andreense resultou em mistura de empresas de vários portes e padrões — desde pequenas organizações familiares, grupos privados nacionais até filiais das grandes empresas transnacionais que aqui chegavam. Rhodia em 1919, General Motors em 1929, Pirelli em 1933 e Firestone em 1948, são exemplos de algumas dessas empresas transnacionais.

Destino industrial 

A segunda fase ocorreu a partir da instalação das montadoras de veículos em São Bernardo. Essas empresas aproveitaram — até demais — os incentivos governamentais e foram em muito beneficiadas pela existência de grandes fornecedores de insumos, que já estavam instalados ou que vieram a ser instalar na região. Tendo a seu favor os meios de transportes — ferrovia e rodovia –, um grande mercado consumidor na região e também na Capital, autonomia político-administrativa e infra-estrutura então favorável, Santo André e o ABC tornaram-se o destino principal de indústrias de todos os portes.

Essas indústrias, por sua vez, atraíram outras indústrias e como necessitavam de número maior de mão-de-obra, tanto Santo André como outras cidades do ABC tornaram-se o destino de migrantes de todo o Brasil. Até o final da década de 70 estavam no ABC funcionando a plena capacidade filiais de diversas empresas, dos mais diversos ramos, e principalmente as indústrias automobilísticas que desencadearam crescimento ainda maior do número de indústrias aqui instaladas e no número de empregos oferecidos.

Para todos os trabalhadores que sonhavam com uma vida melhor e para tantos que vieram para o ABC com muitas esperanças, diversos conseguiram realizar o que desejavam. Porém, uma quantidade ainda maior de pessoas que aqui chegaram só encontrou a miragem de uma vida melhor. No período que coincidiu com o milagre econômico, Santo André já era o segundo Município mais populoso do Estado e o mais industrializado também, só perdendo para a cidade de São Paulo. Ao lado de São Bernardo e de São Caetano, Santo André reforçou a posição de centro geográfico do ABC e chegou até a ser considerada A Capital do Trabalho.

Começam os problemas 

Vítima de industrialização pesada, feita nos moldes do fordismo arcaico, porém mesclando-se com amadorismo empresarial tipicamente comodista brasileiro, a indústria e principalmente os moradores de Santo André começaram a ver o sonho fabril desvanecer. E aí iniciaram-se os problemas.

As causas da evasão industrial também se aplicam aos municípios vizinhos. São Caetano e Santo André sofreram e ainda sofrem impactos maiores devido ao tipo pioneiro de industrialização, feito em momento histórico diferente dos demais.

As principais causas locais que contribuíram para a saída das empresas podem ser denominadas como deseconomias de aglomeração, casos de ausência e alto custo dos terrenos, infra-estrutura urbana saturada, altos salários em relação a outros locais do País, movimento sindical e legislação ambiental.

Aliadas aos fatores locais, as transformações ocorridas nos últimos 20 anos — tanto em nível nacional como mundial, tanto nos aspectos políticos quanto nos aspectos econômicos — determinaram nova conjuntura político-econômica. Podem ser classificados como causas gerais da evasão ocorrida em Santo André aspectos como novo direcionamento industrial, novas tecnologias, política de incentivos fiscais e ações dos poderes públicos que restringiram a industrialização do ABC.

Crise nacional 

E por fim, talvez como maior obstáculo, a crise econômica e social que o Brasil enfrenta desde a década de 80. Crise que arrasta ladeira abaixo economia e povo brasileiro há mais de 25 anos e que não dá nenhum sinal real de recuperação.

Com o passar do tempo, com mais leis restritivas tanto em nível federal, estadual e também municipal com um famigerado Plano Diretor que praticamente impediu a instalação de indústrias em Santo André, se tornou muito mais vantajoso para diversas empresas fecharem unidades aqui e se transferir para outras cidades, seja da Região Metropolitana de São Paulo e Interior de São Paulo seja para cidades de outros Estados. Essas localidades ofereciam e ainda oferecem gama variada de benefícios que vão desde infra-estrutura, terrenos quase gratuitos, até uma série de incentivos fiscais. Ações para reverter a evasão industrial, mesmo através de incentivos fiscais, a Prefeitura de Santo André nem cogitava — como não cogita.

Portanto, são várias as causas pelas quais as indústrias se transferiram e continuam se transferindo de Santo André. Cabe observar que tanto as causas gerais como as causas locais muitas vezes são interdependentes devido ao processo de globalização no qual a economia brasileira está inserida.

Perda locacional 

O maior problema está em outro patamar, mais amplo. A principal causa da evasão industrial em Santo André e no ABC como um todo é a perda das vantagens de localização, ou seja, não interessa mais aos empresários a instalação ou ampliação de empresas na região. Em outras palavras, com tantas restrições legais, impostos altos, custo realmente elevado da mão-de-obra em relação ao restante do País, problemas ambientais e sociais, é muito tentador para os empresários transferirem indústrias para localidades que ofereçam infra-estrutura, isenção de impostos, terrenos doados ou financiados a perder de vista, locais que contenham mão-de-obra barata e disciplinada, entre outros. Enfim, lugares onde o capital possa ser reproduzido com maior rapidez, tranqüilidade e segurança, fatores de estabilidade financeira que em Santo André e no ABC como um todo já não são encontrados.

É por isso que quando muitas pessoas afirmam que capital não tem pátria, estão se referindo ao fato de os novos investimentos sempre se direcionarem a áreas que promovam maior rentabilidade, não se importando com o lugar; ou seja, não se importam com as raízes históricas e sociais. Observemos, porém, que no caso das empresas transnacionais, as filiais têm poder pequeno de decisão. O real poder de decisão locacional está nas matrizes. E se lugar x não está rendendo tanto quanto o lugar y, é mais prático transferir a planta industrial para o y. E quando esse lugar y saturar, transfere-se para um lugar z, e assim por diante.

Fábricas desativadas, placas de vende e aluga, galpões abandonados, esqueletos de instalações industriais, uma sucessão de favelas e moradias auto-construídas juntamente com prédios residenciais e comerciais de alto luxo e muitos prédios populares, mesclando-se com palmeiras e coqueiros que tentam embelezar o que é feio e que foi abandonado por décadas — essa é a atual paisagem urbana de Santo André. Paisagem formada pelo resultado de sucessivas intervenções humanas e que se mostra dona de uma forma urbana inadequada aos conteúdos existentes e inadequada principalmente aos conteúdos desejáveis.

Custos demais 

Essa forma urbana tornou-se inadequada devido, em parte, ao descaso dos órgãos públicos para com o futuro da cidade, com administradores que não se preocuparam em adequar Santo André aos novos tempos. Faltam em Santo André terrenos baratos, áreas cujo valor possa ser considerado baixo em relação ao capital investido. O preço dos lotes em Santo André são tão caros como na Capital, mais caros que em Sorocaba e sul do Estado de Minas Gerais, por exemplo. Esse encarecimento do solo urbano está aliado a impostos altos, trânsito pesado e sempre congestionado, tarifas públicas — e algumas agora particulares — elevadas, proibições ou limitações à ampliação das plantas industriais, excesso de burocracia, entre outros.

Todos esses fatores locais, que contrastam com uma política agressiva de incentivos fiscais e também locacionais oferecidos por outras cidades e outros Estados, contribuíram e contribuem para a saída maciça de empresas. Reestruturação industrial, racionalização produtiva, automação, modernos meios de comunicação e logística são, entre outras, as novidades trazidas pela Terceira Revolução Industrial, que, para variar, chegou tardiamente ao Brasil. A ênfase na racionalização da produção através do sistema just-in-time e o uso quase obsessivo da informática causaram mudanças estruturais nas grandes e médias empresas.

As empresas que não investiram e que não se atualizaram tecnologicamente fecharam as portas ou se encontram em delicada situação econômica. Muitas foram engolidas pelas concorrentes através de fusões e incorporações. E quando empresas concorrentes se unem, o resultado é previsível: corte de funcionários, fechamento de seções, automatização. 

Fugindo da região 

Nesse novo cenário internacionalizante da economia brasileira, muitas empresas resolveram fechar fábricas obsoletas que funcionavam em Santo André para construir novas e modernas unidades em outros locais. Essas empresas aproveitam ao máximo as vantagens locacionais e lucram ainda mais. Mas as grandes empresas ainda não fecharam fábricas no ABC. Fizeram o melhor para si próprias e o pior para os trabalhadores: flexibilizaram o processo produtivo, modernizaram o parque industrial, algumas abriram filiais fora da região, outras terceirizaram parte da produção e a produtividade média por trabalhador aumentou devido à extrema exploração da mão-de-obra que ainda trabalha no setor secundário.

E, mais um ponto polêmico: não existe mais em Santo André e no ABC mão-de-obra suficientemente qualificada para as novas exigências das grandes empresas. Por isso, buscam-se profissionais de outros locais e principalmente de outros países para assumir lugares-chave na organização dessas empresas. Se até a década de 70 qualquer pessoa com um mínimo de instrução poderia trabalhar em uma fábrica, agora até para quem já concluiu curso universitário está difícil a admissão nas grandes indústrias. E os antigos operários continuam a perder seus empregos.

Recentemente, com a internacionalização da economia brasileira, com os avanços dos meios de comunicação e a modernização do sistema de transporte rodoviário, muitos locais antes inacessíveis às grandes indústrias se tornaram atrativos para a instalação de empreendimentos.

Aliado a esse conjunto que engloba desde terrenos quase gratuitos, infra-estrutura e isenção de impostos, percebe-se claramente nos fins dos anos 90 um novo direcionamento da indústria em boa parte do território nacional. E as indústrias do ABC continuam saindo.

Coquetel de complicações 

Sabemos que os principais fatores para o processo de esvaziamento industrial são a falta de espaço disponível e barato na área urbana, legislação rigorosa referente ao meio ambiente, uso do solo e poluição do ar que desestimula ampliações das plantas industriais, ativa participação sindical, às vezes excessivamente ideológica e reivindicatória, falta de política industrial para toda a região, incentivos fiscais oferecidos por outros municípios do Estado de São Paulo e de outros Estados brasileiros, numa estratégia considerada suicida por muitos estudiosos mas praticada indiscriminadamente por quase todo o País. Para completar, a globalização e as novas técnicas de produção, comercialização, gerenciamento de estoques, automatização comercial e industrial, que exigem pesados investimentos que somente monopólios conseguem arcar.

Sabemos também das consequências da evasão industrial, como a questão do emprego ou da falta de emprego, a queda do padrão de vida e consequente periferização, o aumento da oferta de áreas livres para outras atividades econômicas, a queda direta da participação do Município na arrecadação dos tributos federais, estaduais e municipais, o aumento do desemprego e do subemprego e o consequente aumento da violência e das ocorrências policiais, o aumento da sub-habitação e principalmente da favelização, a estabilidade e diminuição da população, as condições ambientais e a queda dos índices de poluição atmosférica.

Terciário problemático 

Restou então a aposta de que o setor terciário da economia — comércio e serviços — conseguiria manter o nível de atividade econômica. No lugar das fábricas, chegaram os hipermercados e os shopping centers, templos de consumo em uma sociedade globalizada. Prédios monumentais foram erguidos em locais onde funcionavam fábricas e o sonho de consumo dos moradores de Santo André e também dos municípios vizinhos se realizou.

Ora, se antes para ir ao Carrefour ou ao McDonald’s era necessário se deslocar até a cidade de São Paulo, agora já não é mais preciso. Esses e muitos outros estabelecimentos comerciais abriram filiais em Santo André e inclui-se a homogeneização contida nos dois maiores shopping centers da cidade — as mesmas lojas, os mesmos restaurantes, os mesmos cinemas com os mesmos filmes. Enfim, tudo igual ao que já tem em São Paulo.

Pena que a terciarização da economia de Santo André foi uma miragem. O que fica como objeto de indagação é que, sem a arrecadação proveniente do setor industrial, como a Prefeitura conseguirá administrar a cidade com menos recursos? Citando exemplo hipotético: imagine um metalúrgico que trabalhava na Chrysler ganhando cerca de R$ 1.500,00 e quando a fábrica fechou e ele foi dispensado sua filha conseguiu emprego de caixa no Carrefour, que se instalou no lugar onde a fábrica funcionava, só que ganhando cerca de R$ 300,00. Em outras palavras, é evidente a queda do padrão familiar.

Como as novas gerações se adequarão à nova conjuntura? Em quais campos se criarão novos empregos? Na década de 70, repito, qualquer pessoa com um mínimo de escolaridade conseguia emprego nas indústrias da região. Atualmente, até para quem tem Segundo Grau completo é difícil conseguir ocupação nos estabelecimentos comerciais, que exigem menos conhecimentos técnicos em relação à indústria. Como as escolas e faculdades de Santo André e do ABC lidarão com essa nova realidade?

Dificilmente Santo André voltará a ser a Capital do Trabalho como disseminavam as propagandas oficiais na década de 70. É evidente a inquietação causada pelas possibilidades de se tornar uma cidade-dormitório, a exemplo do que já está ocorrendo com São Caetano.



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